Yèyé Omo Ejá retou comigo. Gostei

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Véspera de São João. Véspera do inverno. O dia azul, azulzinho. A água do mar quente, quentinha. Eu com um novo sistema para preencher de fotos lindas. Na mochila trouxe, quase sem, querer a GoPro comprada em 2015 em um dos últimos impulsos consumistas. Por que não uma foto subaquática? Mostrar para os hóspedes que aqui na frente, bem debaixo dos nossos pés, tem um mundão colorido, divertido, animado e em constante movimento?

Faz tempo que não mergulhava. Faz tempo que não voltava às origens. Com a máscara nova, supermegapower, fui. A maré alta, forte, puxando. Fui. A água translúcida, melhor que na véspera, mostrando todos os peixes. Segui na onda. Deixei o corpo e a vida me levar. Clique, clique, clique. A peixarada parecia até os antigos personagens da CARAS, toda se mostrando. Fui clicando, clicando, clicando. Uma loucura. Uma festa. Uma alegria.

Nadando cheguei numa colônia de corais azuis. Êxtase. Peixes azuis na colônia de corais azuis. Desbunde. Fiquei tão excitada! Feliz feito a criança que sou. A onda veio por baixo. Sacudiu meu corpo. Bambeei. Bobeei. A câmera com a qual eu estava metralhando a peixarada pulou da minha mão, subiu, desceu, rodopiou e sumiu. Melhor, desapareceu. Desapareceu ali, na frente os meus olhos.

Yemanjá!!!! Devolve, por favor, minha câmera?

Yèyé Omo Ejá, por favor, cadê ela? Brinca, não…tem fotos lindas. Preciso delas. Tem a viagem com Chico por Minas. Tem o mergulho. Tem o peixe azul na colônia de corais azul…

Rodei, afundei, vasculhei. Uma, duas, dez, vinte vezes. Nada. Agulha no palheiro. Titanic no mar do Norte. GoPro nas piscinas do Pirui. Desolada, pedi ajuda aos amigos que comigo estavam no São João. Em caravana, fomos para Dandalunda implorar. Devolve a câmera. Troca por outra coisa. Por favor… Cantamos todos cânticos.

Iemanjá – só se vê mar
Iemanjá – só se vê mar

Mulher tá na praia, homem tá no mar
Mulher tá rezando pro homem voltar
Mané foi pra pesca pescar pra viver
Peixe bom pra comida
Peixe bom pra vender

Iemanjá – só se vê mar
Iemanjá – só se vê mar

Nada. Voltamos. Ficamos lá caminhando e cantando sobre os corais na maré seca. Tipo passeio na lua molhada.

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Canta, pede, olha, foca, procura, vasculha. Canta de novo. No final da busca, percebi que havia experimentado um jeito diferente de rezar e meditar. Foi tão bom que quase parei de pedir a câmera de volta…

Quanto nome tem a Rainha do Mar?
Quanto nome tem a Rainha do Mar?
Dandalunda, Janaína
Marabô, Princesa de Aiocá
Inaê, Sereia, Mucunã
Maria, Dona Iemanjá

Onde ela vive?
Onde ela mora?
Nas águas
Na loca de pedra
Num palácio encantado
No fundo do mar

Mas não vou fazer isso, não. Juro que não é egoísmo, nem falta de desprendimento. A busca da câmera virou um motivo, um pretexto bom para, nos próximos 30 dias, descer todos os dias à praia para olhar, procurar, pensar, cantar, sorrir, caminhar, agradecer, pedir, rezar, meditar e sonhar.

Vale também como aprendizado do dia. O significado de perder e ganhar. Quando é bom e quando é ruim. Lembrar que é preciso sempre cuidar. Das coisas. De si. Do que queremos e do que gostamos. Lembrar que não dá para deixar as coisas à mercê da sorte ou do azar. Não amarrou a câmera? Perdeu, maré, mané. Não cuidou do que era precioso? Corre atrás para recuperar e aprende a não perder de novo. É assim. Todo dia, uma lição. Por isso, é tão bom. Yèyé Omo Ejá retou comigo. Ainda bem. Significa que gosta de mim. Obrigada, rainha. Odôiyá.

 

 

 

 

 

 

 

Veruska e a duna

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A mensagem era curta e sincera.

“Fui lá antes de 1970. Era namorada do pai dos meus filhos. Dei uma guinada em minha mãe e escapamos para a Aldeia Hippie. Fizemos amor nas dunas, sob o luar.

Depois, já na década de 1970, livre do jugo materno e da prisão do marido, voltava lá, de vez em quando, com um parceiro. Íamos namorar e ficávamos naquela pousada das barracas. Esqueci o nome do dono. Era muito gente fina.”

O teor explícito e honesto da mensagem mexeu comigo. Poucos expõe com tanta simplicidade e transparência momentos tão intensos e íntimos. Confesso, fiquei curiosa e fui fuçar no FB quem era a Veruska. Não encontrei muita informação disponível, apenas o retrato de uma senhora de cabelos curtos e óculos escuros. Admirei dona Veruska. Invejei-a também. Noites de amor nas dunas não são para qualquer um.

Fiquei imaginando como ela se sentiu, 40 anos depois, revivendo aquelas memórias. Será que um arrepio de prazer acendeu a espinha dela? Será que sentiu saudades do pai do filho dela? Será que teve algum arrependimento? Desejou voltar lá com alguém?

Fiquei imaginando dona Veruska fuçando o álbum de fotografia em busca do namorado que a levou às dunas. Será que ela perdoou ou entendeu a caretice da mãe, que a impedia de ser feliz? E o parceiro? Quem seria? Um namorado? Um amante? Era casado? Era colega de trabalho? Será que fugiam da firma ao meio dia, inventando uma visita a um cliente em Feira de Santana e tomavam o rumo de Arembepe?

Pensei em mandar uma mensagem para dona Veruska. Propor uma entrevista. Ou apenas uma conversa franca. Desisti. Alimentar a dúvida, às vezes, é mais gostoso do que procurar saber. Vou imaginar muitas ousadias para dona Veruska. Ela e eu seremos mais felizes assim.

 

 

Não se afobe, não

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Não se afobe, não
Que nada é pra já
Amores serão sempre amáveis
Futuros amantes, quiçá
Se amarão sem saber
Com o amor que eu um dia
Deixei pra você

Futuros amantes é uma das músicas que mais gosto dele. Adoro a imagem do amor, entidade concreta, esperando em silêncio, no fundo do armário, no correio, milênios e milênios, até a hora de unir, juntar, apaixonar, novamente ou pela primeira vez, tanto faz. Melhor ainda é a ideia deste amor perdido aqui, que pode, quiçá, servir ali, para outrem. Eles, os futuros amantes, que, amavelmente, irão reciclar o sentimento que, um dia, tive, ganhei, perdi e deixei para você.

Nada é para já. Eu sei. Mas sou afobada, acelerada, alucinada. Sempre que o peito aperta, cantarolo o refrão baixinho, só para mim, para me acalmar, me convencer que vai dar tudo certo, que sempre dá.

Ontem deu. Mais que deu. Ontem eu voltei lá. Feito a sabiá. A convite de um amigo único, ímpar, gentil, generoso, que jamais será suficientemente agradecido e retribuído. Obrigada MFC, outra vez, outra vez e outra vez. Nós, ali, bem na frente dele. Tão perto, que, no começo, fiquei nervosa, tensa. Não podia dar vexame. Não podia exagerar. Sem fotos. Sem arroubos. Olhos nos olhos. Olhos de ardósia. Olhos luminosos e molhados.

Ontem eu voltei as horas para trás. Não teve caravanas, não teve atropelo, não teve gota d’água. Ontem foi só música, lirismo e poesia. Mentira. Estou me contendo com vergonha de parecer uma daquelas loucas que berram no escuro: “lindo, eu te amo Chico.” Ontem foi único. Foi mágico. Foi feliz. Foi arrebatador. Ontem foi todo sentimento. Ontem ainda não acabou. Por isso, não se afobe, não.

 

 

 

 

A culpa deve ser do sol

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Os primeiros 30 minutos foram lindos. Você lá, todo de preto, mais grisalho que no último encontro, cantando com seu fio de voz os versos e as melodias que mais amo em qualquer idioma, a qualquer hora, em qualquer tempo. Nem ouvi as vozes esganiçadas ao meu redor. Nem dei nota aos gritos histéricos. Não me toquei com o coro fora de hora exigindo o despacho tardio do presidente.  Tudo o que importava era o nosso encontro amoroso, que se repete, religioso, a cada nova caravana. Dessa vez, era para ser ainda mais especial, porque trazia comigo outro Chico, meu curumim, de pai e avô paulistanos, e minha baiana querida, vinha de longe, para compartilhar desse encontro.

Você ainda não tinha cantado:

“É um dia de real grandeza, tudo azul
Um mar turquesa à la Istambul enchendo os olhos
Um sol de torrar os miolos
Quando pinta em Copacabana
A caravana do Arará, do Caxangá, da Chatuba
A caravana do Irajá, o comboio da Penha
Não há barreira que retenha esses estranhos
Suburbanos tipo muçulmanos do Jacarezinho
A caminho do Jardim de Alá
É o bicho, é o buchicho, é a charanga”… 

O momento ainda era romântico, doce, lírico, tempo de delicadeza, quando o homem de calça social bege e camisa branca, com listas finas azuis, desferiu o soco. Soco seco, de intensidade média, com punho cerrado. Foi um soco raivoso, irritado, impaciente. Soco de quem não aprendeu a dizer “por favor, será que você pode abaixar o celular que está me atrapalhando”. Soco de quem não gosta de caravana. Soco de quem não pode ser contrariado.

O soco não me atingiu. Estava no meio. Estava com o celular na bolsa, exceção na casa de espetáculos, onde mais de mil mãos tentavam registrar e guardar um pouco de você em seus modernos smartphone. O soco atingiu as costas da minha amiga, que viajou dois mil quilômetros para lhe ver. O soco a deixou irritada e transtornada. O soco me deixou transtornada e enfraquecida. Desliguei de você. Lhe disse adeus e mergulhei na fossa imunda ao meu redor. Depois do soco, à flor da pele, os gritos de “cala a boca-seu idiota, sai da frente-senta seu cretino-cala a boca sua vaca-dá licença-não dou” ficaram mais altos que sua voz.

Filha do medo, a raiva é mãe da covardia
Ou doido sou eu que escuto vozes
Não há gente tão insana
Nem caravana do Arará
Não há, não há

Sol
A culpa deve ser do sol que bate na moleira
O sol que estoura as veias

A culpa deve ser do sol. A culpa de ser do Lula, da Marielle, a culpa deve ser sua… Pensei em quebrar uma garrafa e partir para cima do cara. Pensei em fugir correndo da sala. Pensei em pedir socorro. Pedir para você mandar o homem de camisa branca com listas azuis pedir desculpas e prometer nunca mais socar ninguém. Mas depois de outra gritaria coletiva, você disse que, graças aos fones de ouvido, não ouve a balbúrdia. Logo, não ia me ouvir. Sorte sua. Dessa vez, pode cantar Sábia sem ligar para os apupos. Eu não. Ouvi mais um “cala boca seu idiota” e chorei como se tivesse voltado à aquela noite de setembro de 1968. A culpa deve ser do sol.

Verão 18

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A água estava perfeita. Morna. Como a lágrima que escorria do rosto. Primeiro na face direita. Depois na esquerda. Era cedo. Era hora de partir, mas ela não conseguia largar aquele abraço quente. Estava agarrada ao tronco do seu filho como nunca estivera. Ele ia partir, como sempre partia no final do verão por causa da volta às aulas. Daquela vez, no entanto, era diferente. Quem partia não era apenas ele, seu corpo e sua presença. Quem partia junto era uma infância, sua criancice, sua meninice. Ele ia para ser e ficar adulto. Aquele abraço era uma profunda despedida. Aquele abraço era um ponto final. Feliz. Vitorioso. Bem sucedido. Mas era um ponto final. Ponto.

Ela sabia que ele retornaria, retornaria e retornaria outras inúmeras vezes. Seria o mesmo. Seria completamente diferente. Seria dela, como sempre foi. Seria do mundo, como deveria ser. Ela sentia a felicidade da missão cumprida. Sentia, também, a dor advinda da nostalgia do amanhã.

Com afeto e um pouco de agonia, abraçou-o de novo e de novo, como ele fazia e pedia quando era pequeno e gostava de uma brincadeira. De novo, filho. Mais um beijo. Mais um abraço. De novo. No carro, já perto de estacionar no aeroporto, eles se olharam nos olhos outra vez. De novo. Havia amor absoluto. Havia carinho. Havia confiança. Havia saudade.

Sim, eles sabiam que nada seria como antes. De novo.

Benção

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A praia estava quase vazia no final de tarde. Nem quente nem frio. O sol morno como a água. A luz deslumbrante. A caminhada tinha sido despretensiosa. Era apenas para ajudar a descer a moqueca de peixe e camarão. O dendê sempre pesa.

Na frente iam o filho e duas amigas. Ela ficou para trás com o menino, João. Não, não era o mesmo das garrafas de água. Esse era paulista. Filho de uma hóspede. A conversa era sobre o futuro. Como seria o Pirui daqui a 120 anos. 2029, quando João teria 129. Ela escapou da conversa quando o menino correu para pular uma onda. Foi por um segundo, tempo suficiente para ela sentir e entender o significado da palavra benção.

Aquilo tudo, que incluía o jogo das nuvens refletidas no chão molhado de areia eram benção. Com ou sem mérito, não importa. Era benção. E ela entendeu que era dela, que podia se apropriar daquele sentimento legítimo de satisfação, calma, prazer, acolhimento, amplitude, infinitude, pequeneza, simplicidade, riqueza e pobreza. Era tudo dela. Porque, enfim, ela entendia. Porque, enfim, sentia.  Porque, enfim, bastava.

O menino seguiu brincando com as ondas. Ela seguiu caminhando.

 

Samba da Benção, por Vinícius de Moraes

 

É melhor ser alegre que ser triste
Alegria é a melhor coisa que existe
É assim como a luz no coração

Mas pra fazer um samba com beleza
É preciso um bocado de tristeza
É preciso um bocado de tristeza
Senão, não se faz um samba não

Senão é como amar uma mulher só linda
E daí? Uma mulher tem que ter
Qualquer coisa além de beleza
Qualquer coisa de triste
Qualquer coisa que chora
Qualquer coisa que sente saudade
Um molejo de amor machucado
Uma beleza que vem da tristeza
De se saber mulher
Feita apenas para amar
Para sofrer pelo seu amor
E pra ser só perdão

Fazer samba não é contar piada
E quem faz samba assim não é de nada
O bom samba é uma forma de oração

Porque o samba é a tristeza que balança
E a tristeza tem sempre uma esperança
A tristeza tem sempre uma esperança
De um dia não ser mais triste não

Feito essa gente que anda por aí
Brincando com a vida
Cuidado, companheiro!
A vida é pra valer
E não se engane não, tem uma só
Duas mesmo que é bom
Ninguém vai me dizer que tem
Sem provar muito bem provado
Com certidão passada em cartório do céu
E assinado embaixo: Deus
E com firma reconhecida!
A vida não é brincadeira, amigo
A vida é arte do encontro
Embora haja tanto desencontro pela vida
Há sempre uma mulher à sua espera
Com os olhos cheios de carinho
E as mãos cheias de perdão
Ponha um pouco de amor na sua vida
Como no seu samba

Ponha um pouco de amor numa cadência
E vai ver que ninguém no mundo vence
A beleza que tem um samba, não

Porque o samba nasceu lá na Bahia
E se hoje ele é branco na poesia
Se hoje ele é branco na poesia
Ele é negro demais no coração

Eu, por exemplo, o capitão do mato
Vinicius de Moraes
Poeta e diplomata
O branco mais preto do Brasil
Na linha direta de Xangô, saravá!
A bênção, Senhora
A maior ialorixá da Bahia
Terra de Caymmi e João Gilberto
A bênção, Pixinguinha
Tu que choraste na flauta
Todas as minhas mágoas de amor
A bênção, Sinhô, a benção, Cartola
A bênção, Ismael Silva
Sua bênção, Heitor dos Prazeres
A bênção, Nelson Cavaquinho
A bênção, Geraldo Pereira
A bênção, meu bom Cyro Monteiro
Você, sobrinho de Nonô
A bênção, Noel, sua bênção, Ary
A bênção, todos os grandes
Sambistas do Brasil
Branco, preto, mulato
Lindo como a pele macia de Oxum
A bênção, maestro Antonio Carlos Jobim
Parceiro e amigo querido
Que já viajaste tantas canções comigo
E ainda há tantas por viajar
A bênção, Carlinhos Lyra
Parceiro cem por cento
Você que une a ação ao sentimento
E ao pensamento
A bênção, a bênção, Baden Powell
Amigo novo, parceiro novo
Que fizeste este samba comigo
A bênção, amigo
A bênção, maestro Moacir Santos
Não és um só, és tantos como
O meu Brasil de todos os santos
Inclusive meu São Sebastião
Saravá! A bênção, que eu vou partir
Eu vou ter que dizer adeus

Ponha um pouco de amor numa cadência
E vai ver que ninguém no mundo vence
A beleza que tem um samba, não

Porque o samba nasceu lá na Bahia
E se hoje ele é branco na poesia
Se hoje ele é branco na poesia
Ele é negro demais no coração

 

 

Passagem

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— Oi, bom dia, tudo bem?

— Bom dia. Está tudo bem. Tudo ótimo. Hoje é a formatura do meu filho.

Hoje, 16 de novembro, passei o dia repetindo essa frase. Contei para o porteiro, para o padeiro, para a minha inquilina, para todos os amigos, para a vendedora da loja de bíquinis.

Ontem, antes de embarcar para São Paulo para vir à formatura do meu Chico, contei para todos os hóspedes. Para os amigos de Arembepe. Para a vendedora do mercado. Para a dona do hortifruti. Para Almir, vendedor da Ninoca, para Rose agente da quilombola da Cordoaria, para os meus amigos dos grupos de WhatsApp. Agora, não me cabendo em mim de tanta emoção, catei o computador para escrever . Quem sabe se depois de colocar em palavras, eu me contenha. Eu me estabilize. Eu me aprume.

Por que tudo isso, afinal ele, Chico, só está se formando no nono ano? Por que tanto exagero se ainda faltam o ensino médio, a faculdade, o mestrado…?

Porque sim, é a primeira resposta.

Porque estou feliz e emocionada é a segunda resposta.

Porque hoje ele faz uma importante passagem é a terceira resposta, mas racional, objetiva e igualmente emocionada.

Estou fazendo essa onda toda porque  acho que a entrada no Ensino Médio, colegial do meu tempo, marca a entrada definitiva na adolescência e na juventude. A infância oficialmente acaba. É uma passagem. Um caminho sem volta para uma trilha que entendo linda, divertida, criativa e libertadora.

Meu pequeno Chico fica na memória e na fotografia acima. Hoje, ele deixa de ser menino grande para se tornar um jovem homem. Um adulto aprendiz. Alguém capaz de cuidar de si e dos outros. Alguém apto a criar e a produzir. Alguém que pode até procriar (não, não, por favor, ainda não, é muito cedo). Alguém apto para ser senhor de si e cidadão do mundo.

Hoje, na hora do almoço com os avós na cabeceira, lembramos do primeiro dia de aula. Da primeira escola que não deu certo. Da segunda, Grão de Chão, que o abrigou tão carinhosamente. Lembramos dos professores e professoras. Lembramos das festas. Lembramos dos passeios. Lembramos da rotina do início da vida escolar, quando para acostumá-lo à distância da casa, eu fazia um longo passeio antes de deixá-lo na escola. Íamos ao parque da Água Branca. Dávamos comida aos cavalos. Brincávamos com as tartarugas. Víamos o pavão e as abelhas. Feliz, percebi que ele se lembrava de tudo.  E sabia que era mentira quando diziam que eu ficava o tempo todo do lado de fora no café esperando a aula acabar. “Eu olhava pela fresta e via que você não estava lá, já tinha ido trabalhar”, comentou Chico, hoje, orgulhoso.

Comecei a escrever esse texto à tarde, antes da cerimônia da formatura. Parei para tomar banho e ir. Ainda bem. O ponto final não podia acontecer antes da emoção real, concreta, verdadeira.

Foi lindo ver Chico grande discursando em homenagem a uma professora que irá se aposentar. Foi bacana vê-lo e sabê-lo querido pelos professores e colegas. Foi quente vê-lo lindo e estiloso de terno azul tocando “eu fico assim sem você”.  O que valeu a vida, a minha e a dele, foi vê-lo descer do palco, com uma rosa nas mãos. Sem titubear entre a mãe e a avó, com um sorriso especial nos lábios, ele entregou a flor para Maria, a Mamá, que junto comigo o cuida e o cria. A Mamá que o nina e o alimenta desde o dia em que saímos da maternidade, há quinze anos. A Mamá que generosamente dividiu seu amor entre Luciano e Cristiano, filhos dela, e Chico, filho nosso.

Sim, a passagem está feita. Chico aprendeu matemática, português, desenho, inglês e literatura. Chico aprendeu a fazer amigos. Chico aprendeu a respeitar os mestres. Chico tem conhecimento. Chico tem sabedoria. Chico é amor.

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Chico, vovó e Mamá: muito amor

 

Amor intransitivo

Eu amo

Tu amas

Ele ama

Nós amamos

Vós amais

Eles amam

Amar. Tipo de verbo: regular. Transitividade: transitivo direto, intransitivo e pronominal. Gerúndio: amando. Particípio passado: amado. Infinitivo: amar.

Ah meu Deus, como ela odiava gramática. Na verdade, ela odiava o mundo cheio de regras, ordens e arrumações. A gramática era a regra, a ordem e a arrumação na forma mais chata. A gramática tentava conter a fala. Dominar a palavra. Restringir a conversa. Se meter no papo. Atrapalhar o fluxo. Reduzir o encanto. A gramática era um porre.

Ela odiava gramática na mesma proporção em que amava literatura. A literatura era, na verdade, sua cúmplice no desafio de aprender a ler e a escrever sem aprender as regras. Graças a literatura, ela aprendeu a escrever “de ouvido” para usar uma expressão dos virtuosos que tocam violão sem saber música. Regência? Concordância? Crase? Conjugação? Transitividade? Não, não sabia explicar, mas sabia o que era certo ou errado de tanto ler e repetir. Algumas coisas, é verdade, escaparam. Ela até hoje tem vergonha quando lembra do seguinte diálogo:

— Por que você escreve obrigado e não obrigada?

Silêncio

Silêncio

Silêncio

A resposta foi safa. “É brincadeira. Escrevo obrigado por causa do Fábio Júnior, que diz “obrigadu”. Mas às vezes o corretor corrige, o dedo escapa e sai obrigado.

— Ah, que engraçado.

Findo o dialógo, realizado na era pré-google, ela correu para os livros e descobriu que mulheres falavam “obrigada” e não “obrigado” como ela escrevia sempre no final das mensagens.

A história do amar verbo intransitivo segue sendo, portanto, um mistério, já que ela leu e amou o livro do Mário de Andrade mas ainda não conseguiu entender porque o verbo amar pode ser transitivo direto, intransitivo e pronominal. Quer dizer, ela até entendeu porque já amou muito e esse sentimento é mesmo dúbio, estranho, esquisito, incontrolável, indomável e avesso às regras. Por isso, talvez, a gramática tenha sido assim tão ampla e aberta com o verbo.

Afinal, dizem, que verbos transitivos são verbos que, tendo sentido incompleto, necessitam de um complemento verbal para completar o seu sentido. Amar, portanto, necessita de um objeto direto ou indireto. A gente, em geral, ama alguém ou alguma coisa.

É?

Amar a si mesmo é amar alguma coisa? A dúvida era recente. Sim, há poucos dias, depois de ler um livro — sempre eles — ela descobriu que amava profundamente a si mesma. Era uma paixão louco, que ao ser descoberta a fez e a faz andar de sorriso nos lábios, rídicula, como as cartas de amor. A descoberta do amor próprio foi recente e chegou junto com o aniversário de 52. Não houve nenhum fato especial, nenhuma situação externa, apenas um entendimento claro e sútil. Ela amava a vida que tinha. Amava a pessoa que se tornara. Amava o jeito. Amava as escolhas. Amava-se. Não era um amor narciso. Ao contrário. Ela amava especialmente os defeitos, as fraquezas e a capacidade recém-adquirida de aceitar a própria vulnerabilidade. Ela amava o fracasso e o caminho cheio de buracos que havia escolhido. Amava também a solidão. Amava o desprendimento. Amava o passado e as roupas velhas.

Epa, epa, epa.

Ela deu um google e leu: “verbos intransitivos são verbos com significado completo, não sendo necessária a junção de objeto direto e objeto indireto para complementar o seu sentido. Referem-se a ações que iniciam e terminam no próprio sujeito, não transitando para um objeto.”

Ela se amava. Ponto. Ela era o sujeito. O verbo era o verbo. Ela se amava. Ela não precisava mais do amor nem da aprovação de ninguém. Ser amado era bom, era gostoso, era agradável, mas não era mais necessário. Ela, enfim, não precisava fazer ginástica olímpica nem malabarismo do Cirque de Soleil para ganhar sua dose diária de amor. Bastava existir. Bastava ser. Bastava amar. A si mesmo como aos outros.  Amor próprio, sem ciúmes nem conflito. Apenas amor. Intransitivo.

 

Os olhos da cobra verde
Hoje foi que arreparei
Se arreparasse a mais tempo
Não amava quem amei

Arrenego de quem diz
Que o nosso amor se acabou
Ele agora está mais firme
Do que quando começou

E se não tivesse o amor
E se não tivesse essa dor
E se não tivesse o sofrer
E se não tivesse o chorar (ah, o amor)
E se não tivesse o amor

No Abaeté tem uma lagoa escura
Arrodeada de areia branca

CAETANO VELOSO, IT S A LONG WAY

 

 

 

 

 

A conquista da vulnerabilidade

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Ela sempre se orgulhou de duas coisas. Ter uma alma sem relevo e raramente sonhar.

A alma sem relevo facilitava a vida. Privava de dores. Encurtava caminhos. Resumia os sentimentos. Encurtava os períodos de tristeza. Espantava a depressão.

A escassez de sonhos lhe dava orgulho. Um dia, ouviu dizer que os iogues também não sonhavam. Apenas dormiam um sono profundo e algumas horas depois acordavam prontos e revigorados para a vida. Ela era muito orgulhosa e tinha orgulho dessa semelhança. Apesar de jamais desejar ser iogue. Ela não gostava de meditar.

Um dia, no entanto, ela sonhou. O sonho era muito, muito estranho. Ela estava em um avião. O que sempre foi comum na vida dela. O avião começava a cair. Cair. Cair. Ela sentia medo. Muito medo. Mas não achava que ia morrer. Ela não morreu. O piloto deu um jeito. O avião se espatifou com jeito no chão e ela saiu ilesa.

Na sessão de terapia da quarta-feira pela manhã, ela contou o raro sonho para a analista. A versão que ela deu para o enredo foi espetacular. Ela, que se achava foda, entendeu a quimera como um sinal de poder, controle, domínio e invulnerabilidade.

Com muita certeza, ela falou: “Sabe Marta, eu sei que as coisas estão difíceis para o meu lado. A vida está dura. Não estou entregando o resultado. O trabalho está puxado. Mas esse sonho… acho que ele significa que eu vou sobreviver. O avião vai cair mas mesmo assim manterei o controle, seguirei viva. Invulnerável. Sempre foi assim. Essa é a minha grande qualidade”, ela afirmou. Marta era freudiana e nada falou. Ouviu. Anotou. Tentou saber mais detalhes. Não tinha. Ela havia contado tudo.

Na semana seguinte, ela sonhou de novo. Não estava mais em um avião. O veículo era um carro. Ela adorava carros. Esportivos. Conversíveis. Velozes. No sonho, ela estava numa estrada íngrime, com curvas estranhas, meio que disputando uma corrida com um funcionário da equipe dela. Ele era executivo também. Ambicioso também. Sem filtro e sem escrúpulo também. Era capaz de tudo para entregar o número. Missão dada, missão cumprida, especialmente se na ponta da linha tivesse um bônus gordinho.

No sonho, eles trombavam. Ninguém se machucava, mas o carro dela pifava e o dele seguia ileso. Que nem na Fórmula 1. Ele a deixava para trás, comendo poeira. Ela sabia que tinha perdido. Mas na hora de resumir o enredo onírico, deu um jeito de ficar bacana na fita. Dourou a história. Interpretou. Disfarçou. Ponderou. Marta ouviu tudo novamente em silêncio. Anotou. Perguntou detalhes. A sessão acabou.

Na sessão seguinte, a queda do avião e a trombada do carro se tornaram excelentes metáforas para o que estava acontecendo com a vida dela. A pessoa invencível, invulnerável, campeoníssima, todo-poderosa, tinha tomado um pé na bunda fenomenal, seguido de uma rasteira. Estava na lona. Ferida. Pelada. Escalpelada. Na hora, ela não lembrou dos sonhos. Nem mais falou sobre eles. Apenas tentou mostrar que estava bem e que podia caminhar sozinha.

Se despediu de Marta com uma desculpa esfarrapada. Disse que ficaria indo e vindo e não poderia mais manter a rotina de sessões. Verdade. Mentira. Queria mesmo era fazer economia. Eliminar o custo supérfluo.

O tempo passou. Ela se virou como pode, sem as sessões de análise e sem os sonhos. A alma até ganhou umas colinas, que ela subiu e desceu para ganhar músculos e curar a dor. Teve jeito. Teve conserto. Teve fé e, graças a Deus, ela encontrou a melhora dela.

Na semana passada, ela visitou uma livraria. Tinha que esperar uma amiga. Na prateleira do térreo, encontrou um livro escrito por uma conhecida. Ficou curiosa, folheou, leu a orelha e comprou. O dia em que morri em Nova York, da jornalista Milly Lacombe. A história era diferente da dela mas tinha muito a ver com ela.  Devorou o livro. Enquanto, o engolia lembrou. Lembrou dos dois sonhos esquecidos. Lembrou de outro livro lido e de um texto já escrito. Juntou as peças.

Sonhos  são como deuses. Quando não se acredita neles, deixam de existir. E a gente se ferra porque erra muito. Ela se ferrou, mas não durou. Não sonhava, mas acreditava nos deuses. Foram Eles que a colocaram no devido lugar.

Como assim? Assim, derrubada das nuvens e do Olimpo, ela entendeu que era vulnerável. Logo, humana. Logo, falha. Logo, sensível. Logo, verdadeira. Logo, fraca. Logo, forte. Logo, bacana. Logo, safa. Logo capaz e pronta para sacudir a poeira e levantar. Dar, a seu modo, uma volta por cima. Se amar acima de todas as coisas, como Ele sugeriu. Ao fazê-lo, descobriu de verdade o que significava ser feliz.

 

 

 

Jesus seja louvado!

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Aconteceu assim.

Era feriado e a criança acordou cedo. A mãe não deu conta de fazê-la parar de chorar. Para não acordar o pai, cansado, decidiu sair com o menino de casa. Aproveitar para fazer mercado. Lá ele sossega, pensou.

Menino pequeno, viaja de cadeirinha. Colocou o pequeno lá, no banco de trás. Foram rodando pela cidade deserta. Todo mundo ainda em casa, dormindo até acordar, graças ao dia festivo. Na porta do mercado, um espécie de boutique de delícias, encontraram uma placa educada.

Hoje o Santa Luzia ficará fechado por motivo de feriado religioso.

O que fazer? Dar meia volta e buscar outro assunto. Mãe e filho seguiram no carrinho, um corsa azul, quatro portas, pequeno e discreto. Subiram a Augusta ainda vazia. Cruzaram a Paulista, àquela época ainda aberta ao tráfego, viraram na Luís Coelho. A mãe tinha lindas memórias daquela rua.

Virou-se para trás e falou ao filho bebê.

– Sabe que a mamãe nasceu ali?

Ela apontava a maternidade São Paulo, berço da maior parte dos bebês abastados dos anos 60/70 do século passado. Talvez o passado remoto tenha produzido a reação no pequeno curioso.

Do silêncio fez-se o pranto e a agitação. Como um boneco de posto de gasolina, ele começou a agitar os braços e o tronco para tentar escapar da prisão da cadeirinha de segurança. Na virada da Matias Aires, a tentativa de fuga virou rebelião armada. A mãe até tentou contê-lo com um braço, enquanto que segurava o volante com o outro. Não deu. Ciosa, parou o carro quase na esquina, do outro lado da banca de jornal.

Desceu e foi à guerra no banco traseiro. O bebê fofinho, tipo Johnson, havia se transformado. Era um pedúnculo. Um capeta de cachos loiros. Um exu mirim. Berrava e lutava contra a mãe, determinada a amarra-lo novamente na cadeirinha , da qual ele havia escapado.

A berraria é interrompida por um toc toc na janela. “Que hora para alguém pedir informação”, ela pensou. Gentil, baixou o vidro manual, enquanto tentava fechar o cinto de segurança em torno do corpo do filhote.

— Jesus seja louvado! Pare de bater em seu filho. Vamos chamar a polícia, disse a mulher do lado de fora do carro, acompanhada por um homem de terno.

— Jesus seja louvado, repetiu ele. Senhor, afaste o demônio do corpo dessa mulher.

— A mulher endemoniada sou eu, pensou ela enquanto segurava seu bebê fujão pelo tornozelo.

O mantra do Jesus seja louvado interessou o garoto que parou de berrar e passou a se divertir com a fala do casal do lado de fora. A mãe, desesperada para se livrar dos dois, teve uma ideia genial.

Com olhar esbugalhado e sorriso Monalisa nos lábios, começou a berrar também:

— Amém, Jesus. Que o senhor seja louvado. Adeus capeta que partiu do meu corpo. Amém Jesus. Que o senhor seja louvado.

Os gritos dela agradaram o casal, que foram baixando o tom, baixando, baixando, até se calarem.

— Vá com Deus, irmã, disseram antes de partir.

Suando, ela viu o casal subir a ladeira. O bebê estava quieto, sentado na cadeira. Tinha um sorriso maroto nos pequenos lábios.

— Você está rindo do mico que sua mãe pagou, né sua peste? Vamos para casa e agora sem dar um pio e sem se mover dessa cadeira.

A mãe, então, voltou para o banco do motorista, engatou primeira e partiu.

Com fé em Deus e a paz de Cristo.