Nostalgia

Hoje descobri porque gosto de andar de ônibus. Ele, diferentemente do carro, anda rápido e não me deixa na porta. Caminhar é preciso. Da porta de casa ao ponto. Do ponto ao destino.

Hoje o meu destino era o bairro de Higienópolis. Participo de uma mesa no II Congresso de Comunicação Interna e Cultura Organizacional, realizado na FAAP.  Fazia muitos anos que eu não caminhava pelo bairro, que foi minha casa por duas encarnações.

Sai pela porta do coletivo e aterrissei em 1984. Edificio Brasília, Avenida Angélica 2121. Minha primeira casa. Meu primeiro aluguel. Minha estreia na vida adulta. Uma onda de prazer inundou meu corpo. Fui muito feliz vivendo naquele apezinho de 60 metros quadrados, com vista para a Paulista. Tinha juventude. Tinha energia. Tinha um zilhão de projetos e vontades.

Era tudo novo. Era tudo primeira vez. Olhei para a janela e revi o filme do gato Zanzibar, que um dia escapou pela janela e pulou do décimo primeiro andar para a cobertura do décimo terceiro. Na virada da esquina, reparei na marquise que durante anos serviu de lar para um morador de rua que adotei. Até um dia em que acordei e ele havia sido assassinado. Vivi com a culpa por muitos dias e noites. Podia tê-lo abrigado e evitado a tragédia? Na esquina, encontrei a vaga da minha Brasília branca. Foi meu primeiro carro, que andava aos trancos e barrancos, com pneus carecas e tanque vazio. Foi nele que joguei todas as minhas tralhas quando sai de casa para casar.

Fiquei dez anos longe do bairro. Retornei em 2001 com o objetivo de emprenhar e ter um filho. Mudei para um apezão na avenida Higienópolis. O mais antigo do bairro. A sala tinha o tamanho de uma quadra de tênis e, de novo, eu estava prenha de planos, projetos e sonhos. O principal nasceu há 13 anos com o nome de Francisco. Enquanto caminhava pela calçada da praça Buenos Aires, senti uma profunda saudade do carrinho de bebê que eu empurrava ladeira acima e ladeira abaixo. A emoção de passar e parar na frente da vitrine da loja Hortelã não cabe em nenhuma palavra. Lá, diariamente, passeava com meu filho, que era querido e mimado pela dona da loja. É uma loja de brinquedo à moda antiga, com bonecos e carrinhos feitos de madeira, bolas de pano e piões de alumínio brilhante.

Foi um tempo bom que passou. Memorável. Não tenho nostalgia, porque não sinto tristeza nem melancolia profunda por algo que não fiz, perdi ou deixei para trás. A vida correu, a vida viveu gravada na minha memória e no trilho do bonde que cruzava a praça Vilaboim.

15 comentários sobre “Nostalgia

  1. Claudia parabéns pelo texto!!! Gostei muito, eu que sou bem mais velho que você já estou praticando o desapego ha muito tempo, não sou saudosista não, só ando com saudades dos meus sonhos que não existem mais!

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  2. Legal Cláudia ler tudo sobre sua nova caminhada como é bom recomeçar. A princípio temos medo, tudo novo assusta . Depois descobrimos nossa capacidade de superar e se superar.

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  3. Legal ! Também curto muito andar de ônibus. Há algum tempo que não a lia… Estava com saudades. É possível né…? Sentir saudades de alguém que nunca se viu. Abraços !

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    1. Sim, Sergio. É muito possível sentir saudade de quem não se conhece mas com quem mantemos algum tipo de relação. Ontem morreu Umberto Eco. Ele era meu amigo querido, mas não nos conhecíamos. Obrigadíssimo por sua mensagem. beijo

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  4. Que texto sensacional, é muito bom curtir a vida como ela quer que a curtamos. Andar de onibus faz bem não somente a alma,mas a Cultura agradece. A muito a aprender em cada pedacinho de São Paulo. Curto demais fazer isso com meu companheiro eterno. Cada cenário, cada paisagem, tudo é unico e em movimento o tempo inteiro. Parabéns!

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  5. Claudia, eu acabo de ler o seu livro. E sim – as vezes penso: para quem escrevemos? Eu escrevo, mas não publico, e penso, para quem escreveria? E desta vez, saboreio não a pergunta, mas a resposta, que talvez você já possa a saborear… Bem, a Claudia escreve escreve para quem tem a sensibilidade a flor da pele, ou melhor, para quem ainda não sabe, mas que está para sentir a sensibilidade a flor da pele, encoberta por alguns anos de clausura corporativa. Li o seu livro, mas já ” sou uma sem crachá ” há muitos anos,e pensei: que bom que existem mulheres assim, que possuem esta coragem e esta sensibilidade expostas, de forma tão verdadeira!!! Dividi nestas duas horas que devorei o livro um desejo também de compartilhar ideias, que podem alimentar almas, quiçá, como acabara de alimentar a minha.
    Vou para a Serra da Canastra, MG, ainda mais encantada com a estrada de terra e o sol nascendo perto às cachoeiras. Vou à PUC, onde faço um mestrado, ainda mais certa, que as minhas escolhas ainda frutificarão, não só para mim, mas também para todo um universo de seres sensíveis e libertos! Gostaria de um dia, quem sabe nas curvas de São Paulo, ou da Bahia, lhe conhecer e trocar ideias sobre as delicadezas da vida e o quanto é frutífero o trabalho, a função que com coração, vira emoção!

    Obrigada pelo texto de “A vida sem Crachá”.

    Hélida de Lima – Cantareira, SP, Brasil.

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    1. Hélida, quem agradece sou eu. Por sua mensagem, por seu carinho, por sua troca. Escreva e compartilhe. Fará bem a você e muito melhor aos outros. Assim, como a sua mensagem fez bem para mim. Vamos sim nos encontrar em SP ou na Bahia. Muito obrigada e muito prazer. beijos

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