São João do Nordeste. São João do Brasil

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Chorei muito na minha primeira festa de São João. Estávamos em 1971 e tinha que dançar quadrilha em uma daquelas apresentações de escola de bairro. Minha mãe comprou uma roupa de caipira vermelha que era bonitinha. Para acompanhá-la, ganhei botas de verniz preto, amarradas com cadarços do bico do pé até quase o joelho. Difícil imaginar? Pense num daqueles cartezes do Toulose Lautrec para o Moulin Rouge. Lembre-se do calçado das moças. Era a minha bota. Chorei porque não queria vesti-la. Não conhecia o Lautrec e achava que ficaria parecendo uma chacrete (aquelas moças bonitonas que dançavam no Chacrinha). Emburrei. Bati o pé. Borrei as pintas de caipira do meu rosto e perdi. Fui de bota de verniz. Talvez por causa desse episódio, passei anos abominando o São João. Não gostava de dançar quadrilha. Odiava as bombas. Detestava música caipira.

Foi trabalhando que reatei com o Santo. Descobri, durante uma conversa em uma gerente de marketing de um shopping da Bahia, uma informação para eles tão óbvia quanto para mim contundente. O São João é a maior festa do Nordeste do ponto de vista de faturamento e engajamento. O maior Shopping da Bahia vende no São João mais do que no Natal, no dia das Mães ou no dia dos Namorados. As maiores empresas de confecção populares brasileiras com força no Nordeste, como Riachuelo e Pernambucanas, têm seu maior faturamento no mês de junho por causa do Santo amigo de São Francisco e Santo Antônio. As companhias aéreas e rodoviárias têm seu estoque de passagens esgotado neste período. As estradas para o interior têm congestionamentos de horas. As empresas que não podem parar precisam contar com times extras para repor as faltas no serviço. As escolas entram em férias por falta de alunos. O comércio tradicional fecha as portas e o padeiro não faz pão. Nos dias 23 e 24 de junho, só trabalha quem é obrigado, sob ameaça de demissão, ou participa da festa. No mais, feriado geral.

O que explica esse fenômeno é o engajamento e a relevância da ocasião. São João é uma festa de interior. Todo mundo volta para “casa”, para as origens do sertão. As grandes comemorações, os melhores forrós e os shows mais desejados acontecem nas praças e fazendas de cidades pequenas ou médias de muita tradição. São fracos os festejos nas capitais. Na Bahia, as campeãs são Cruz das Almas, Amargosa e Santo Antônio de Jesus. Na Paraíba, o melhor acontece em Campina Grande, que, anualmente, briga com Caruaru, no Pernambuco, pelo título de maior São João do Brasil. As prefeituras investem. O governo do estado ajuda e quem é esperto vai para lá impactar o povo. Nos bons tempos, era fácil encontrar patrocinadores para camarotes, festas e coberturas editoriais das comemorações. Até porque a maioria dos sulistas nem enxergava que essa oportunidade existia, tamanha a miopia do sul-maravilha.

Como a minha mãe fez comigo, todo mundo se produz e veste roupa e sapato novo para ir à festa. Os homens também vão ao barbeiro cuidar da aparência. As mulheres entopem os salões de beleza. Fazem mão, pé e cabelo. São João é época de ficar lindo e feliz. Quem se hospeda na casa de parentes não chega de mãos vazias. É costume levar presentes para o dono da casa e para os parentes queridos. São João é momento, também, de enfeitar, faxinar e pintar a casa, que fica de portas abertas para receber os familiares e amigos. Por isso, o varejo de material de construção também festeja. Logo na entrada, é obrigatório ter licor (maracujá, genipapo, tamarindo e jabuticaba), laranja de umbigo cortada ao meio e amendoim cozido. À vontade, para quem quiser comer e beber. Vale dizer que as casas ficam de porta aberta. Para entrar, basta bater palmas. Ninguém tem medo de assalto, nem de estranho. Parece até que os ladrões também tiram férias para celebrar o santo. Passei vários São João em Cruz das Almas e ficava impressionada com a receptividade e carinho das pessoas.

— Vá entrando. A casa é simples, mas é sua. Essa era a frase que eu mais ouvia. Era absolutamente verdadeira.

Na calçada, de 23 a 24 de junho, arranja-se a fogueira, que fica lá toda arrumada como um enfeite, aguardando o início da festa. O momento de acendê-la é mágico. O responsável não pode falhar. Ela tem que acender rápido e forte. As crianças felizes ficam rodando em volta, soltando bombinhas e atiçando quem tem medo dos estrondos. Os mais velhos viajam no tempo com os olhos vidrados no fogo. É um momento ancestral, quando a experiência de estar em casa, em família, de volta às origens, se transforma em emoção e prazer.

Minha família é pequena e toda paulistana, com raízes na avenida Brigadeiro Luis Antonio, Consolação e Faria Lima. Já nasci morando em prédio. Cresci no asfalto. Dancei quadrilha em palco de teatro. Confesso que sinto inveja de quem tem esse São João primitivo no coração e na memória. Sorte a minha de ter descoberto São João a tempo de comer amendoim, tomar licor e dançar e cantar, muito sem jeito, um forrózinho pé de serra:

Você endoideceu meu coração

Endoideceu

E agora o que é que eu faço sem teu amor

E agora o que é que eu faço sem um beijo teu

6 comentários sobre “São João do Nordeste. São João do Brasil

  1. também nasci e cresci em São Paulo embalado pela letra de Sampa na voz do Caetano Veloso e foi um choque quando descobri que o Brasil não podia ser representado unicamente pelas capitais dos estados, pela orla do atlantico… mas que o Brasil verdadeiro é a colcha de retalhos das diversas comunidades interioranas espalhas pelo continente.Atualmente resido numa cidade do interior do parana que é o amalgama de paulistas, mineiros, gaúchos e catarinenses juntamente com 22 etnias (da america, da europa e do oriente) que chegaram juntos ha 80 anos para criar um lar. Como é rico nosso pais, para quem se dispõe a encontrar e reconhecer a diversidade da sua essência….

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  2. Apesar de profundamente paulistana, vc soube “ver” o nordeste… O que vc descreve com algum ar de novidade e pouca familiaridade, eu sinto na alma. Sou neta de cearense e apesar de tb ter crescido no asfalto, a cultura nordestina me é muito familiar. Além disso, tive o privilégio de termos um sítio onde desfrutei de mato e fogueiras na infância…. é realmente muito legal o simbolismo todo e tem muito nordestino que não tem a percepção que vc teve da beleza desta data!

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